Evolução Contábil: BP e DRE

A Lei nº 6.404/76, conhecida como Lei das Sociedades por Ações (Lei das S.A.), revolucionou a contabilidade brasileira ao estabelecer normas para a elaboração e apresentação das demonstrações financeiras das companhias. Desde sua promulgação, diversas modificações foram introduzidas para adequar a legislação brasileira às práticas contábeis internacionais (IFRS – International Financial Reporting Standards).

Vamos detalhar a composição do Balanço Patrimonial (BP) e da Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) quando a lei entrou em vigor e as principais modificações até os dias atuais, de forma didática.

1. Composição Inicial da Lei 6.404/76 (1976)

Balanço Patrimonial (BP) – Lei 6.404/76 (original)

O Balanço Patrimonial, na sua versão original da Lei 6.404/76, tinha a seguinte estrutura básica:

Ativo:

Representava os bens e direitos da empresa, dispostos em ordem decrescente de grau de liquidez.

  • Ativo Circulante:

    • Disponibilidades (caixa, bancos)
    • Direitos realizáveis no curso do exercício social subsequente (contas a receber, estoques)
    • Aplicações de recursos em despesas do exercício seguinte (despesas antecipadas)
  • Ativo Realizável a Longo Prazo (ARLP):

    • Direitos realizáveis após o término do exercício seguinte (contas a receber de longo prazo, depósitos judiciais)
    • Direitos derivados de vendas, adiantamentos ou empréstimos a sociedades coligadas ou controladas, diretores, acionistas ou participantes no lucro da companhia, que não constituíssem1 negócios usuais na exploração do objeto da companhia.
  • Ativo Permanente:

    • Investimentos: Participações permanentes em outras sociedades e direitos de qualquer natureza2 que não se destinassem à manutenção da atividade principal da empresa.
    • Ativo Imobilizado: Bens e direitos destinados à manutenção das atividades da empresa, com vida útil superior a um ano (terrenos, edifícios, máquinas, equipamentos, veículos).
    • Ativo Diferido: Aplicações de recursos em despesas que contribuiriam para a formação do resultado de mais de um exercício social (gastos de organização, gastos de pré-operacionais, despesas com pesquisa e desenvolvimento que não se enquadravam como ativo).

Passivo:

Representava as obrigações da empresa, dispostas em ordem crescente de exigibilidade.

  • Passivo Circulante:

    • Obrigações da companhia, inclusive financiamentos para aquisição de direitos do ativo permanente, que se vencessem no exercício seguinte (fornecedores, salários a pagar, impostos a pagar, empréstimos de curto prazo).
  • Passivo Exigível a Longo Prazo (PELP):

    • Obrigações com vencimento em prazo maior que o exercício social seguinte (empréstimos e financiamentos de longo prazo, debêntures).
  • Resultados de Exercícios Futuros (REF):

    • Receitas de exercícios futuros, deduzidas dos custos e despesas a elas correspondentes. Eram receitas recebidas antecipadamente que ainda não haviam sido “ganhas” (ex: aluguéis recebidos antecipadamente).
  • Patrimônio Líquido (PL):

    • Representava os recursos próprios da empresa.
    • Capital Social: Valor subscrito e integralizado pelos sócios ou acionistas.
    • Reservas de Capital: Valores que não transitavam pelo resultado (ágio na emissão de ações, alienação de partes beneficiárias, doações e subvenções para investimento).
    • Reservas de Reavaliação: Resultantes da reavaliação de bens do ativo.
    • Reservas de Lucros: Constituídas pela apropriação de lucros (reserva legal, reserva estatutária, reserva para contingências, reserva de lucros a realizar).
    • Lucros ou Prejuízos3 Acumulados: Saldo dos lucros ou prejuízos que aguardavam destinação.

Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) – Lei 6.404/76 (original)

A DRE apresentava o resultado econômico da empresa em um determinado período, seguindo o regime de competência. A estrutura básica era:

  • Receita Bruta de Vendas:
    • Vendas de produtos, mercadorias e/ou serviços.
  • (-) Deduções da Receita Bruta:
    • Vendas canceladas, descontos incondicionais, impostos sobre vendas (ICMS, IPI, PIS, COFINS).
  • = Receita Líquida de Vendas
  • (-) Custo dos Produtos Vendidos (CPV) ou Custo das Mercadorias Vendidas (CMV) ou Custo dos Serviços Prestados (CSP):
    • Custo de aquisição ou produção dos bens/serviços vendidos.
  • = Lucro Bruto
  • (-) Despesas Operacionais:
    • Despesas de Vendas: Gastos relacionados à comercialização (publicidade, comissões).
    • Despesas Administrativas: Gastos com a gestão geral da empresa (salários da administração, aluguel de escritório).
    • Outras Receitas e Despesas Operacionais: Não ligadas diretamente à atividade principal.
  • = Lucro Operacional
  • (-) Despesas Financeiras Líquidas:
    • Receitas financeiras (-) Despesas financeiras.
  • = Lucro Antes do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)
  • (-) Provisão para Imposto de Renda (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)
  • = Lucro Líquido do Exercício Antes das Participações
  • (-) Participações no Lucro:
    • Participações de debenturistas, empregados, administradores, partes beneficiárias, etc.
  • = Lucro Líquido do Exercício

2. Modificações Significativas ao Longo do Tempo (até os dias atuais)

A Lei 6.404/76 passou por importantes alterações, sendo as mais relevantes as trazidas pela Lei nº 11.638/2007 e pela Lei nº 11.941/2009, que buscaram a convergência das normas contábeis brasileiras aos padrões internacionais do IFRS.

Principais Modificações no Balanço Patrimonial (BP)

a) Extinção do Ativo Diferido:

  • Antes da Lei 11.638/2007: O Ativo Diferido registrava despesas pré-operacionais, gastos com pesquisa e desenvolvimento, e outros gastos que gerariam benefícios futuros.
  • Após a Lei 11.638/2007: Esse grupo foi extinto. Os saldos existentes foram reclassificados para o Ativo Intangível, para o Ativo Imobilizado (se gerassem bens corpóreos) ou registrados diretamente como despesa (se não atendessem aos critérios de reconhecimento de ativo).

b) Criação do Ativo Intangível:

  • Antes da Lei 11.638/2007: Ativos sem existência física (patentes, marcas, softwares, goodwill) eram registrados no Ativo Permanente, muitas vezes dentro do Ativo Diferido ou Imobilizado.
  • Após a Lei 11.638/2007: Foi criado o grupo Ativo Intangível, no Ativo Não Circulante, para abrigar esses direitos que, embora incorpóreos, têm valor econômico e geram benefícios futuros para a empresa.

c) Reestruturação do Ativo Permanente para Ativo Não Circulante:

  • Antes da Lei 11.638/2007: O Ativo era dividido em Ativo Circulante, Realizável a Longo Prazo e Ativo Permanente (Investimentos, Imobilizado e Diferido).
  • Após a Lei 11.638/2007 e MP 449/2008 convertida na Lei 11.941/2009: A denominação “Ativo Permanente” foi substituída por Ativo Não Circulante. A nova estrutura do Ativo passou a ser:
    • Ativo Circulante: Mantém a característica de bens e direitos realizáveis em até 12 meses.
    • Ativo Não Circulante: Abriga:
      • Ativo Realizável a Longo Prazo: Direitos realizáveis após o término do exercício seguinte.
      • Investimentos: Participações societárias permanentes e outros investimentos que não se destinam à venda nem à manutenção da atividade principal.
      • Imobilizado: Bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da empresa.
      • Intangível: Direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da companhia.

d) Extinção dos Resultados de Exercícios Futuros (REF):

  • Antes da Lei 11.638/2007: O REF era um grupo do Passivo que representava receitas recebidas antecipadamente.
  • Após a Lei 11.638/2007: O REF foi extinto. As receitas recebidas antecipadamente passaram a ser classificadas como Passivo Circulante ou Passivo Não Circulante, dependendo da data de realização da receita. Isso alinha-se ao regime de competência, onde a receita só é reconhecida quando “ganha”.

e) Criação dos Ajustes de Avaliação Patrimonial (AAP) no Patrimônio Líquido:

  • Antes da Lei 11.638/2007: As reavaliações de ativos geravam a Reserva de Reavaliação.
  • Após a Lei 11.638/2007: A Reserva de Reavaliação foi extinta e os saldos foram transferidos para Ajustes de Avaliação Patrimonial (AAP). O AAP registra as contrapartidas de aumentos ou diminuições de valor atribuídos a elementos do ativo e do passivo, em decorrência da sua avaliação a valor justo,4 enquanto não forem computados no resultado do exercício. Isso inclui, por exemplo, ganhos e perdas na avaliação de instrumentos financeiros.

f) Ações em Tesouraria no Patrimônio Líquido:

  • Antes da Lei 11.638/2007: As ações em tesouraria não tinham uma conta específica destacada no PL.
  • Após a Lei 11.638/2007: As Ações em Tesouraria passaram a ser destacadas no balanço como dedução da conta do Patrimônio Líquido que registrou a origem dos recursos aplicados na sua aquisição. Isso garante maior transparência sobre o capital próprio da empresa.

g) Eliminação do Lucro/Prejuízo Acumulado como conta principal no PL (para S.A. de capital aberto):

  • Antes da Lei 11.638/2007: As sociedades por ações apresentavam Lucros ou Prejuízos Acumulados no Patrimônio Líquido.
  • Após a Lei 11.638/2007: A Lei 11.638/07 e, posteriormente, a Lei 11.941/09, determinaram que, para as companhias abertas, o saldo de lucros apurado no final do exercício deve ser totalmente destinado (dividendos, reservas) ou absorvido por prejuízos. A conta de “Lucros Acumulados” só pode ter saldo negativo (prejuízos). O saldo de “Prejuízos Acumulados” ainda pode existir. A ideia é evitar que as empresas retenham lucros indefinidamente sem uma destinação específica.

Resumo das modificações na estrutura do Balanço Patrimonial (comparativo):

Grupo (Original Lei 6.404/76) Subgrupo (Original Lei 6.404/76) Grupo (Atual após Leis 11.638/07 e 11.941/09) Subgrupo (Atual) Observações
ATIVO ATIVO
Ativo Circulante Ativo Circulante Mantido.
Ativo Realizável a Longo Prazo Ativo Não Circulante – Realizável a Longo Prazo Mantido, mas dentro do “Ativo Não Circulante”.
Ativo Permanente Ativo Não Circulante Denominação alterada para “Ativo Não Circulante”.
– Investimentos – Investimentos Mantido dentro do “Ativo Não Circulante”.
– Imobilizado – Imobilizado Mantido dentro do “Ativo Não Circulante”.
– Diferido – Intangível Extinto. Saldo reclassificado para “Intangível” (se aplicável), “Imobilizado” ou despesa. Criação do “Ativo Intangível” para bens incorpóreos.
PASSIVO PASSIVO
Passivo Circulante Passivo Circulante Mantido.
Passivo Exigível a Longo Prazo Passivo Não Circulante Denominação alterada para “Passivo Não Circulante”.
Resultados de Exercícios Futuros Extinto Extinto Receitas recebidas antecipadamente classificadas no Passivo Circulante ou Não Circulante.
PATRIMÔNIO LÍQUIDO PATRIMÔNIO LÍQUIDO
Capital Social Capital Social Mantido.
Reservas de Capital Reservas de Capital Mantido.
Reservas de Reavaliação Ajustes de Avaliação Patrimonial Extinta. Criado “Ajustes de Avaliação Patrimonial” para registrar variações de valor justo não transitadas pelo resultado.
Reservas de Lucros Reservas de Lucros Mantido.
Lucros ou Prejuízos Acumulados Lucros/Prejuízos Acumulados Para companhias abertas, lucros devem ter destinação específica; só pode ter saldo positivo para prejuízos. Ações em Tesouraria destacadas como dedução.
Ações em Tesouraria Nova conta dedutora do PL.

Principais Modificações na Demonstração do Resultado do Exercício (DRE)

As modificações na DRE foram mais sutis em termos de estrutura principal, focando mais na reclassificação de certas contas e na maior transparência das informações. A Lei 11.638/2007 trouxe a necessidade de maior alinhamento com o regime de competência e a primazia da essência sobre a forma.

  • Critérios de Avaliação de Estoques e Provisões: Embora não altere a estrutura da DRE diretamente, a harmonização com as normas internacionais impactou a forma como custos e despesas são reconhecidos, afetando o Lucro Bruto e o Lucro Operacional. A adoção do conceito de “perdas estimadas” para créditos de liquidação duvidosa, por exemplo, substituiu a antiga “provisão para devedores duvidosos”, influenciando as despesas.
  • Outras Receitas e Despesas (não-operacionais): A distinção entre receitas e despesas operacionais e não-operacionais foi um pouco relativizada. Muitas “outras receitas” e “outras despesas” que antes eram classificadas como não-operacionais (por não fazerem parte da atividade principal, mas serem recorrentes) passaram a ser consideradas operacionais se fizerem parte da gestão regular do negócio. A terminologia “Resultado Não Operacional” foi extinta na estrutura legal da DRE, sendo que os itens não operacionais (ex: venda de imobilizado) são geralmente apresentados como “Outras Receitas/Despesas” antes do resultado financeiro.
  • Abertura de Despesas Financeiras: Embora já houvesse separação, a ênfase na apresentação detalhada das despesas e receitas financeiras aumentou, dada a relevância desses itens para muitas empresas.

A essência da DRE, de apresentar o resultado econômico da empresa de forma sequencial (receita bruta, receita líquida, lucro bruto, lucro operacional, resultado antes dos impostos e lucro líquido), permaneceu. As mudanças foram mais focadas na substância econômica das transações e na qualidade das informações divulgadas.

Exemplo de DRE simplificada (atual):

  • Receita Bruta de Vendas
  • (-) Deduções de Vendas (Devoluções, Abatimentos, Impostos sobre Vendas)
  • = Receita Líquida de Vendas
  • (-) Custo dos Produtos/Mercadorias/Serviços Vendidos (CPV/CMV/CSP)
  • = Lucro Bruto
  • (-) Despesas com Vendas
  • (-) Despesas Administrativas
  • (-) Outras Despesas Operacionais
  • (+) Outras Receitas Operacionais
  • = Lucro/Prejuízo5 Antes do Resultado Financeiro e dos Tributos
  • (-) Despesas Financeiras
  • (+) Receitas Financeiras
  • = Resultado Antes dos Tributos sobre o Lucro
  • (-) Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro
  • = Lucro/Prejuízo Líquido do Período
  • (-) Participações e Contribuições
  • = Lucro/Prejuízo Líquido Atribuído aos Acionistas da Controladora (e aos não controladores, se houver)

3. Considerações Adicionais e Impacto da Convergência Internacional

A principal força motriz por trás das modificações na Lei 6.404/76 foi a convergência às Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS). O objetivo foi tornar as demonstrações financeiras brasileiras mais comparáveis globalmente, aumentando a transparência e a credibilidade das empresas no cenário internacional.

Principais impactos da convergência:

  • Valor Justo: Maior utilização do conceito de valor justo na avaliação de ativos e passivos, especialmente em instrumentos financeiros e investimentos. Isso levou à criação do Ajustes de Avaliação Patrimonial.
  • Essência sobre a Forma: Ênfase na substância econômica das transações em detrimento da sua forma legal.
  • Teste de Impairment (Redução ao Valor Recuperável): Obrigatoriedade de realizar testes de recuperabilidade de ativos (imobilizado, intangível, investimentos) para verificar se o valor contábil excede o valor recuperável. Perdas por impairment impactam a DRE.
  • Reconhecimento de Receita e Despesa: Normas mais detalhadas para o reconhecimento de receitas e despesas, buscando maior consistência e clareza.
  • Notas Explicativas: Aumentou significativamente a exigência de notas explicativas detalhadas para complementar as informações apresentadas no Balanço Patrimonial e na DRE, fornecendo maior transparência sobre políticas contábeis, premissas e julgamentos.

Em resumo, a Lei 6.404/76, desde sua promulgação, tem sido um marco na contabilidade societária brasileira. As alterações posteriores, impulsionadas pela convergência internacional, buscaram modernizar e aprimorar as demonstrações financeiras, tornando-as mais relevantes, confiáveis e comparáveis, refletindo de forma mais fidedigna a situação patrimonial e o desempenho econômico das empresas.

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