Juliano Moreira (1872-1933) foi uma figura ímpar na história da psiquiatria brasileira, um verdadeiro precursor na luta por um tratamento mais humano e científico para os internados em hospitais psiquiátricos. Em um período em que a loucura era frequentemente sinônimo de isolamento, maus-tratos e desespero, Moreira emergiu como um farol de esperança, combatendo as práticas desumanas e introduzindo abordagens inovadoras que revolucionaram o cuidado com a saúde mental no Brasil.
Formado em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1891, Juliano Moreira rapidamente se destacou por sua inteligência e senso crítico. Sua paixão pela neurologia e psiquiatria o levou a aprofundar seus estudos na Alemanha, berço de importantes avanços na área, onde teve contato com nomes como Emil Kraepelin e Alois Alzheimer. Essa formação internacional consolidou seu compromisso com uma abordagem mais científica e menos custodial da doença mental.
Ao retornar ao Brasil, Moreira enfrentou uma realidade desoladora nos hospitais psiquiátricos da época. Os manicômios eram, em sua maioria, depósitos de indivíduos marginalizados, onde a contenção física, o isolamento e a falta de higiene eram a norma. Ele se opôs veementemente a essa visão simplista e punitiva da loucura, defendendo a necessidade de um ambiente terapêutico, com respeito à dignidade do paciente e a aplicação de métodos diagnósticos e terapêuticos embasados na ciência.
Como diretor do Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, a partir de 1903, Juliano Moreira implementou reformas radicais. Ele aboliu as celas fortes, as camisas de força e outros instrumentos de tortura, introduzindo práticas como a terapia ocupacional, o tratamento farmacológico e a abertura dos pátios para a convivência dos pacientes. Além disso, valorizou a pesquisa científica, transformando o Hospício Nacional em um centro de excelência no estudo das doenças mentais na América Latina. Seu trabalho não se limitou ao ambiente hospitalar; ele também advogou pela criação de colônias agrícolas para pacientes com doenças crônicas, buscando a reinserção social e a dignidade do trabalho. Sua luta incansável pavimentou o caminho para uma psiquiatria mais ética, humanizada e cientificamente fundamentada no Brasil.
Entendimento da Loucura: Um Estudo Comparado
A compreensão da loucura tem evoluído significativamente ao longo da história, refletindo as cosmovisões e os avanços científicos de cada época. A seguir, exploraremos as perspectivas da Medicina Tradicional, da Psicologia e da Doutrina Espírita, oferecendo um estudo comparado que busca didatismo e rigor técnico-científico, sem abrir mão da pureza doutrinária ao abordar o Espiritismo.
Medicina Tradicional e o Modelo Biomédico
A Medicina Tradicional, especialmente a partir do século XIX, consolidou um entendimento da loucura predominantemente focado no modelo biomédico. Essa perspectiva considera as doenças mentais como resultantes de disfunções orgânicas, neurológicas, genéticas ou bioquímicas.
- Causas: A etiologia da loucura, sob essa ótica, é buscada em desequilíbrios de neurotransmissores (como serotonina, dopamina, noradrenalina), alterações estruturais ou funcionais do cérebro (lesões, tumores, atrofias), predisposição genética e fatores biológicos como infecções, traumatismos cranianos ou doenças metabólicas.
- Diagnóstico: Baseia-se na observação de sintomas, na história clínica do paciente, em exames neurológicos, neuroimagens (ressonância magnética, tomografia) e testes psicométricos para identificar padrões de comportamento, pensamento e emoção que se enquadrem nos critérios diagnósticos estabelecidos por manuais como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) ou a CID (Classificação Internacional de Doenças).
- Tratamento: O tratamento preconizado é primariamente farmacológico (psicofarmacologia), visando corrigir os desequilíbrios bioquímicos ou reduzir os sintomas. Além da medicação, a eletroconvulsoterapia (ECT) pode ser utilizada em casos graves e refratários. A internação hospitalar é indicada para casos de crise aguda, risco para si ou para terceiros, ou quando o tratamento ambulatorial não é suficiente.
Limitações: Embora o modelo biomédico tenha proporcionado avanços significativos no tratamento de diversas condições psiquiátricas, ele tem sido criticado por sua tendência a reducionismo, desconsiderando frequentemente os aspectos psicossociais, culturais e espirituais da experiência humana. A ênfase excessiva na medicação pode negligenciar a necessidade de abordagens terapêuticas mais abrangentes.
Psicologia e a Abordagem Multidimensional
A Psicologia, em suas diversas correntes (psicanálise, comportamentalismo, humanismo, cognitivismo, sistêmica, etc.), oferece uma compreensão mais abrangente da loucura, considerando-a como um fenômeno complexo que emerge da interação de múltiplos fatores: biológicos, psicológicos, sociais e culturais.
- Causas: A loucura pode ser vista como um desajuste psíquico resultante de traumas (infantis ou adultos), conflitos inconscientes, padrões de pensamento disfuncionais, dificuldades de relacionamento, estresse crônico, eventos de vida adversos, privação social ou cultural, e até mesmo construções sociais que estigmatizam determinados comportamentos. Cada abordagem psicológica tem sua ênfase específica na etiologia. Por exemplo, a psicanálise foca nos conflitos inconscientes e nas experiências da infância, enquanto a terapia cognitivo-comportamental (TCC) se concentra nos padrões de pensamento e crenças disfuncionais.
- Diagnóstico: O diagnóstico psicológico envolve uma avaliação aprofundada da história de vida do indivíduo, seus padrões de comportamento, pensamentos, emoções, relações interpessoais e o impacto de seu sofrimento na vida cotidiana. São utilizadas entrevistas clínicas, testes psicológicos (projetivos, psicométricos) e observação comportamental. O foco não é apenas na rotulação diagnóstica, mas na compreensão da dinâmica psíquica do indivíduo.
- Tratamento: A intervenção psicológica se dá principalmente através da psicoterapia, que busca auxiliar o indivíduo a compreender suas dificuldades, desenvolver estratégias de enfrentamento, modificar padrões disfuncionais, elaborar traumas e promover o autoconhecimento. A terapia familiar, a terapia de grupo e as intervenções psicossociais também são amplamente utilizadas. Em muitos casos, a abordagem é interdisciplinar, com a colaboração entre psicólogos e psiquiatras.
Contribuições: A Psicologia trouxe uma perspectiva humanizada para a compreensão da loucura, enfatizando a subjetividade, a história de vida e o potencial de desenvolvimento do indivíduo. Ela ressalta a importância do ambiente e das relações na saúde mental.
Doutrina Espírita e a Loucura Sob Novo Prisma
A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec e amplamente divulgada no Brasil por figuras como Bezerra de Menezes, oferece uma visão singular e profunda da loucura, integrando aspectos biológicos, psicológicos e, fundamentalmente, espirituais. Para o Espiritismo, o ser humano é um Espírito imortal, encarnado temporariamente em um corpo físico, e a loucura, em muitas de suas manifestações, pode ser compreendida sob a ótica das leis universais de causa e efeito (karma) e da influência espiritual.
O livro “Loucura Sob Novo Prisma”, atribuído a Bezerra de Menezes pela psicografia de Divaldo Franco, é uma obra fundamental para o entendimento espírita da saúde mental. Ele aprofunda as bases da loucura sob a ótica da imortalidade da alma e da lei de ação e reação.
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Causas: A Doutrina Espírita não nega as causas orgânicas ou psicológicas da loucura, mas as amplia consideravelmente. Além das predisposições genéticas e das lesões cerebrais, são consideradas:
- Débitos Cármicos (Lei de Causa e Efeito): Experiências de vidas passadas, onde o Espírito cometeu desequilíbrios morais graves, podem gerar aflições e predisposições a doenças mentais na vida atual, como um mecanismo de aprendizado e reparação.
- Obsessão Espiritual: A influência de Espíritos desencarnados perturbadores, com intenções maliciosas ou sofredores que se afinam com as vibrações do encarnado, pode desequilibrar o perispírito (corpo fluídico do Espírito) e, por consequência, o sistema nervoso do indivíduo, gerando quadros de ansiedade, depressão, fobias, alucinações e até mesmo psicoses. Bezerra de Menezes, em “Loucura Sob Novo Prisma”, destaca a obsessão como um fator significativo em muitos casos de transtornos mentais, alertando para a necessidade de diferenciar as obsessões das doenças puramente orgânicas.
- Provas e Expiações: A loucura pode ser uma prova a ser superada pelo Espírito, visando o seu aprimoramento moral e intelectual. Pode ser uma expiação de faltas passadas, oferecendo a oportunidade de reajuste e aprendizado.
- Desequilíbrios Perispirituais: O perispírito, por ser o elo entre o Espírito e o corpo físico, pode sofrer desajustes energéticos que se refletem na saúde mental. Esses desajustes podem ser causados por hábitos viciosos, pensamentos negativos ou influências espirituais.
- Mediunidade Desequilibrada: Em alguns casos, a loucura pode ser o resultado de uma mediunidade não compreendida ou não desenvolvida de forma adequada, gerando perturbações e confusão mental.
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Diagnóstico: O diagnóstico espírita não substitui o médico ou psicológico, mas o complementa. Além da análise dos sintomas e da história de vida, busca-se identificar a presença de influências espirituais (através da mediunidade séria e esclarecida, com cautela e discernimento), a natureza das aflições (se são provas, expiações ou obsessões) e o grau de comprometimento perispiritual.
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Tratamento: O tratamento espírita da loucura é holístico e multifacetado:
- Tratamento Médico e Psicológico: A Doutrina Espírita enfatiza a necessidade e a importância do acompanhamento médico e psicológico tradicional. A medicação e a psicoterapia são vistas como recursos valiosos para o reequilíbrio do organismo físico e mental.
- Fluidoterapia (Passe Magnético): A aplicação de passes magnéticos visa reequilibrar as energias perispirituais do indivíduo, auxiliando na recomposição do campo áurico e na mitigação das influências espirituais.
- Tratamento Desobsessivo: Em casos de obsessão, são realizadas reuniões de desobsessão, onde médiuns bem preparados buscam dialogar com os Espíritos perturbadores, esclarecê-los e encaminhá-los para o tratamento espiritual.
- Evangelhoterapia: O estudo e a prática dos ensinamentos de Jesus, contidos no Evangelho, promovem a reforma íntima, o cultivo de virtudes e a elevação moral, fortalecendo o Espírito contra as influências negativas e promovendo a paz interior.
- Vibrações Positivas e Oração: A prece e o envio de vibrações de amor e luz são considerados recursos poderosos para auxiliar o indivíduo e os Espíritos envolvidos.
- Caridade: A prática da caridade, o serviço ao próximo, é vista como um poderoso agente de cura e reajuste, tanto para o encarnado quanto para os desencarnados.
Síntese Comparativa:
Característica | Medicina Tradicional (Biomédica) | Psicologia (Diversas Abordagens) | Doutrina Espírita |
Visão do Ser | Foco no corpo físico, com o cérebro como centro da mente. | Ser psicossocial, com ênfase na mente, emoções e relações. | Espírito imortal, encarnado, com corpo físico e perispírito. |
Causas da Loucura | Disfunções orgânicas, neurológicas, genéticas, bioquímicas. | Traumas, conflitos inconscientes, padrões de pensamento disfuncionais, estresse, ambiente. | Débitos cármicos, obsessão espiritual, desequilíbrios perispirituais, provas e expiações, mediunidade desequilibrada. |
Diagnóstico | Sintomas, exames físicos, neurológicos, neuroimagens, testes psicométricos (DSM, CID). | Entrevistas clínicas, testes psicológicos, observação comportamental, história de vida. | Complementa o médico/psicológico; busca identificar influências espirituais e causas cármicas através da mediunidade séria. |
Tratamento | Farmacológico (psicofármacos), ECT, internação. | Psicoterapia (individual, familiar, grupo), intervenções psicossociais. | Médico/psicológico, fluidoterapia (passes), tratamento desobsessivo, evangelhoterapia, oração, caridade. |
Ênfase | Correção de desequilíbrios biológicos. | Compreensão e transformação de processos mentais e comportamentais. | Reequilíbrio espiritual, moral e energético, aliando com os tratamentos convencionais. |
É crucial destacar que a Doutrina Espírita não se opõe ou desconsidera os avanços da Medicina e da Psicologia. Pelo contrário, preconiza a união dessas abordagens, buscando uma compreensão integral do ser humano. A loucura, sob essa ótica, é um complexo desafio que demanda a atenção de todas as áreas do conhecimento, para que o indivíduo possa ser amparado em suas múltiplas dimensões – física, mental e espiritual. A pureza doutrinária espírita reside em reconhecer a imortalidade do Espírito e as leis divinas como fundamentos para a compreensão e o tratamento das aflições humanas, sem jamais negligenciar a ciência humana.
Juliano Moreira, com sua visão avançada e humanista, talvez não tenha tido acesso formal aos ensinamentos da Doutrina Espírita, mas sua busca por um tratamento digno e científico para os alienados ressoa com os princípios de caridade e respeito à individualidade que são caros ao Espiritismo. Sua luta pela desinstitucionalização e pela valorização do paciente como ser humano completo antecipou muitas das discussões que hoje são debatidas, inclusive à luz da espiritualidade.