Na história do Espiritismo no Brasil, poucos nomes brilham com a intensidade de Cairbar de Souza Schutel (1868-1938). Médico homeopata, político e incansável divulgador da Doutrina, Schutel transformou-se em uma ponte entre a fé tradicional e o conhecimento espírita. Mas, para ele, entender a fé significava enfrentar de frente o seu livro mais sagrado e controverso: a Bíblia.
Schutel, o “Bandeirante do Espiritismo”, dedicou grande parte de sua vida e de suas obras – notavelmente O Espírito do Cristianismo e Parábolas e Ensinos de Jesus – a uma missão audaciosa: resgatar a mensagem pura de Jesus, que, segundo ele, havia sido sufocada por séculos de interpretações humanas e dogmas distorcidos.
O Início de Tudo: Kardec e a “Timeline” do Conhecimento
Para compreender a visão de Schutel, precisamos de um breve recuo na história.
O Espiritismo, codificado por Allan Kardec (1804-1869) na França a partir de 1857, não se propôs a ser uma nova religião, mas sim uma ciência, uma filosofia e uma moral. Seu objetivo central era trazer clareza à compreensão da vida, da morte e do destino humano, baseando-se na comunicação com os Espíritos.
Kardec estabeleceu a base filosófica e científica para a visão que Schutel iria desenvolver sobre o Cristianismo. A reencarnação, a lei de causa e efeito e a pluralidade dos mundos habitados formaram o tripé que desmontaria muitas das crenças bíblicas estabelecidas. A Bíblia, com sua longa timeline de textos escritos ao longo de mais de mil anos, é um repositório da evolução espiritual da humanidade – desde as leis mosaicas (o “olho por olho”) até os ensinamentos elevados de Jesus.
Os “Erros” Bíblicos e a Crítica de Schutel
Quando Schutel falava em erros e incongruências bíblicas, ele não estava, em primeiro lugar, apontando para falhas históricas ou científicas. Sua crítica era mais profunda e de natureza teológica e moral. Ele argumentava que as maiores distorções eram erros de interpretação cometidos pelos homens, que transformaram a Palavra de Deus em dogmas rígidos e, por vezes, cruéis.
As Principais Incongruências Apontadas Eram:
| Ponto de Crítica | Interpretação Humana (Literal) | Interpretação Espírita (Schutel) |
| Condenação Eterna | Um Deus que condena almas ao fogo eterno no Inferno. | Incompatível com um Deus de infinita justiça e bondade. A alma sempre tem a chance de progredir (Reencarnação). |
| Parábolas e Milagres | Eventos sobrenaturais que violam as leis da natureza. | Alegorias com profundo sentido moral; fenômenos naturais ou manifestações de leis espirituais (mediunidade e magnetismo). |
| “Olho por Olho” | Uma lei justa de retribuição, defendida pelo Antigo Testamento. | Uma lei transitória para um povo primitivo, revogada por Jesus, que trouxe a Lei do Amor e do Perdão. |
| A Morte como Fim | A vida se resume a uma única existência terrena. | A morte é uma libertação; a reencarnação é o meio de aperfeiçoamento da alma, um processo de aprendizado contínuo. |
Para Schutel, o problema não estava na figura de Jesus, mas na “letra que mata”, ou seja, a interpretação literal do texto que esvaziava seu verdadeiro “espírito”.
O Evangelho Segundo o Espiritismo: A Chave Mestra
A solução para essas distorções é encontrada na obra de Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), a qual Schutel e o movimento espírita brasileiro abraçaram. Este livro é o guia definitivo para a interpretação espírita da Bíblia.
Qual é o Evangelho à Luz da Doutrina Espírita?
O Evangelho, sob o prisma espírita, não é apenas um registro histórico, mas o código moral deixado por Jesus.
- Sua Finalidade: Resgatar a Moral Universal. O Evangelho é a síntese do amor, da caridade, da indulgência e do perdão. Ele ensina as leis de Deus aplicáveis ao nosso dia a dia, guiando-nos para a felicidade verdadeira e o progresso espiritual.
- O Evangelho é a Chave: Ao ser interpretado pela lógica, razão e revelação dos Espíritos, o texto bíblico adquire coerência. O espiritismo remove o véu do mistério, mostrando que as palavras de Jesus, quando despidas de dogmas, formam a base de uma vida justa e evolutiva.
Jesus, a Crucificação e o Propósito Maior
Schutel e a Doutrina Espírita oferecem uma visão transcendente sobre a vinda e a morte de Jesus:
- Por que Jesus Veio? Jesus não veio apenas para salvar a humanidade de um “pecado original”, mas para ser o Modelo e Guia da humanidade. Ele demonstrou a perfeição moral que podemos e devemos atingir. Ele plantou a semente da Lei Divina – a Lei do Amor – no coração do mundo.
- A Necessidade da Crucificação: A crucificação não foi um sacrifício punitivo exigido por Deus para perdoar a humanidade. Foi a prova máxima do amor incondicional e da renúncia. Ao aceitar o martírio sem ódio, Jesus demonstrou que a verdadeira vida não está no corpo físico, mas no Espírito. A morte na cruz foi o selo de sua missão, provando a imortalidade da alma e a superioridade dos valores morais sobre a violência humana.
O Propósito de Tudo Isso, à luz do Espiritismo, é o Progresso Irreversível. Jesus veio para acelerar nossa evolução, mostrando-nos o caminho da caridade, que é o único capaz de nos conduzir à felicidade.
A Mensagem Central e a Interpretação do Evangelho
A mensagem central do Evangelho de Jesus é a Caridade em sua mais ampla expressão: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Para Schutel e os espíritas, o Evangelho deve ser interpretado:
- Pela Razão e pela Moral: Se uma passagem bíblica (como o “dente por dente”) contradiz a justiça e a bondade de Deus, ela deve ser vista como um reflexo da época em que foi escrita, e não como a verdade final. O amor é a única balança.
- Pela Coerência Universal: A Doutrina Espírita, como o Consolador prometido, revela que as leis de Deus são eternas e imutáveis. O que Jesus ensinou é universal e não pode se basear em rituais vazios ou sacrifícios de sangue.
Schutel nos convida, assim, a sermos vigilantes e a perceber as distorções humanas ao texto do Evangelho. Sempre que a interpretação de uma passagem bíblica levar ao medo, ao ódio, à exclusão ou à injustiça, é ali que a “viga no olho” humano se instalou, obscurecendo a luz da mensagem de Jesus.
A Bíblia, portanto, torna-se um farol de orientação moral quando lida com o coração, mas iluminada pela razão espírita. Cairbar Schutel nos deu a chave para esta jornada, incentivando-nos a buscar o Espírito do Cristianismo – a essência do amor – em cada palavra do Mestre.