O livro, O Evangelho Segundo o Espiritismo (ESE), codificado por Allan Kardec, não é apenas uma obra religiosa, mas uma bússola moral e filosófica que ilumina os ensinamentos de Jesus Cristo sob a lente da Doutrina Espírita. É o roteiro para a nossa reforma íntima, a chave que decifra o sentido profundo das máximas evangélicas.
A Gênese e o Propósito da Obra
O Evangelho Segundo o Espiritismo foi publicado pela primeira vez em 1864, integrando a Codificação Espírita, o conjunto de cinco obras fundamentais que Allan Kardec organizou com base nas comunicações dos Espíritos Superiores.
Enquanto O Livro dos Espíritos estabelece a filosofia e a ciência, e O Livro dos Médiuns trata da parte experimental (mediunidade), o ESE foca na moral evangélica, que é o coração da Doutrina.
Kardec sentiu a necessidade de criar uma obra que expusesse o ensinamento de Jesus de forma clara, acessível e despojada dos dogmas e interpretações restritivas que se acumularam ao longo dos séculos. O propósito era, e ainda é:
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Explicar as Máximas Morais: Desvendar o sentido profundo, ético e prático dos preceitos de Jesus, mostrando como se aplicam à vida cotidiana.
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Harmonizar Fé e Razão: Utilizar os princípios do Espiritismo (reencarnação, pluralidade dos mundos, comunicação com os Espíritos) para explicar o Evangelho, demonstrando que a fé racional é o único caminho.
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Provar a Identidade de Jesus: Corroborar que Jesus foi o Modelo e Guia da Humanidade, cujos ensinamentos são a expressão mais pura da Lei de Deus.
O Contexto Histórico e a Necessidade de uma Nova Leitura
No século XIX, o avanço da ciência e da filosofia promovia um crescente ceticismo em relação às narrativas religiosas tradicionais. Kardec, como educador e pensador racional, percebeu que a fé precisava de um alicerce lógico. O Espiritismo fornece essa base.
Ao trazer o Espiritismo, Deus não estava revogando a lei de Jesus, mas sim a confirmando e a iluminando. A Doutrina Espírita não é uma nova religião em sentido de culto, mas a terceira revelação da Lei de Deus:
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Moisés (Primeira Revelação): Trouxe o Decálogo (Os Dez Mandamentos) – a Lei de Justiça.
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Jesus (Segunda Revelação): Trouxe a Lei de Amor – a essência da moral.
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Espiritismo (Terceira Revelação): Traz a Lei de Caridade e Verdade – explicando as leis morais e imortais de forma racional.
Portanto, o ESE se apresenta como o Evangelho redivivo, despido das vestes da alegoria ininteligível, mostrando que a vida após a morte, a justiça da reencarnação e a consequência das nossas ações são verdades científicas e filosóficas que endossam, e não negam, o sermão da montanha.
A Estrutura do ESE e a Divisão dos Evangelhos
O corpo principal de O Evangelho Segundo o Espiritismo é composto por 28 capítulos temáticos (ex: Cap. 1: “Não vim destruir a Lei”, Cap. 5: “Bem-aventurados os aflitos”, Cap. 15: “Fora da Caridade não há salvação”).
Estes capítulos reúnem e comentam versículos dos quatro evangelistas canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João), organizando-os por temas morais.
Contudo, antes desta organização temática, Kardec dedicou a Introdução da obra para estabelecer a fundação e o método da sua análise. É nesta introdução que ele apresenta uma classificação didática e notável, que divide o conteúdo dos Evangelhos canônicos em cinco partes distintas, cada uma com um foco específico.
Essa divisão é crucial, pois permite ao leitor diferenciar o que é essencialmente moral (imutável) do que é histórico ou dogmático (sujeito a interpretação ou mudança).
As Cinco Partes dos Evangelhos Segundo a Análise de Kardec
Kardec propõe a seguinte divisão em sua Introdução:
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Os Atos da Vida de Cristo (Fatos Históricos)
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Os Milagres
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As Predições
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A Parte Dogmática
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A Parte Moral
A seguir, a análise detalhada de cada uma destas partes, conforme a ótica da Doutrina Espírita.
I. Os Atos da Vida de Cristo (Fatos Históricos)
Esta parte abrange todos os eventos, datas, locais e interações humanas que compõem a biografia de Jesus: seu nascimento, infância, família, os lugares que visitou, as pessoas com quem conviveu, os apóstolos que escolheu e, por fim, a sua crucificação e morte.
A Visão Espírita:
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Relevância Histórica: Estes fatos são importantes para situar Jesus no tempo e no espaço, confirmando a sua existência real e a autenticidade de sua missão. Eles nos mostram o homem Jesus, que viveu entre os homens, sofrendo as mesmas vicissitudes e tentações.
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O Ensinamento: A vida de Jesus, por si só, é um ensinamento. Sua humildade (nascimento simples), sua paciência, sua coragem diante da perseguição e seu exemplo de serviço desinteressado são lições práticas de como devemos conduzir a nossa própria existência.
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A Ponderação: A Doutrina Espírita acolhe a maioria desses fatos históricos, mas não os considera o ponto crucial do Evangelho. O que realmente importa não é onde Jesus nasceu, mas o que Ele ensinou e como viveu a Sua Lei de Amor.
II. Os Milagres
Esta parte engloba todos os eventos que, segundo a ciência da época, pareciam violar as leis da Natureza, como a cura de cegos e paralíticos, a transformação da água em vinho, a multiplicação dos pães e a ressurreição de Lázaro.
A Visão Espírita:
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A Natureza dos Milagres: O Espiritismo não nega os prodígios, mas os explica. Kardec afirma que não há milagres no sentido de derrogação da lei de Deus. O que parece milagre é, na verdade, a aplicação de leis da Natureza que ainda são desconhecidas da humanidade.
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A Ciência Espírita: A cura, por exemplo, é explicada pelo uso do fluido vital (fluidoterapia) e da influência magnética poderosa exercida por um Espírito Superior como Jesus. A “materialização” e a “desmaterialização” são fenômenos medianímicos sob o controle de uma vontade elevadíssima.
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A Finalidade: Os prodígios de Jesus serviram a um propósito: chamar a atenção das massas. O povo da época precisava de demonstrações visíveis do poder para crer na autoridade moral daquele que ensinava. Hoje, a humanidade, mais racional, precisa de explicações. A finalidade do milagre era a fé, mas a finalidade da fé não é o milagre, é a moral.
III. As Predições (Profecias)
Inclui as palavras de Jesus referentes ao futuro, como o anúncio de sua própria Paixão e Morte, a predição da destruição de Jerusalém e, notavelmente, o anúncio de uma nova era, a vinda do Consolador Prometido.
A Visão Espírita:
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A Revelação do Futuro: A Doutrina Espírita ensina que o futuro não é totalmente fixo, mas que Espíritos de elevadíssima hierarquia, como Jesus, têm a visão penetrante que lhes permite antever as grandes linhas e consequências dos eventos, especialmente aqueles que dependem da lei divina e da evolução moral.
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O Consolador Prometido: Esta é a predição mais importante para o Espiritismo. Jesus disse: “Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre” (João 14:16). Kardec e os Espíritos Superiores afirmam que o Espiritismo é esse Consolador.
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Consolador no Sentido de Esclarecedor: Não veio substituir Jesus, mas sim explicar as Suas palavras, trazendo luz à imortalidade da alma e à justiça da reencarnação, consolando a humanidade da dor e do medo da morte, através da razão e da verdade.
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A Confirmação pela Profecia: O fato de Jesus ter anunciado que a verdade seria plenamente revelada num tempo futuro serve de prova da origem divina da Doutrina Espírita, que cumpre essa promessa.
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IV. A Parte Dogmática
Esta parte contém os pontos que exigem fé cega na interpretação literal da Igreja, ou que se tornaram dogmas (verdades inquestionáveis e irrefutáveis) ao longo do tempo. Inclui a Santíssima Trindade, a natureza de Jesus (Deus e Homem), a ressurreição da carne, a graça, o batismo e outros sacramentos.
A Visão Espírita:
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O Confronto com a Razão: Kardec não rejeita o Evangelho, mas sim as interpretações que o tornaram dogmático e, muitas vezes, incompatível com a lógica e a justiça de Deus. O Espiritismo se baseia no princípio: “Fé inabalável é só a que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade.”
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A Doutrinação: O Espiritismo é essencialmente anti-dogmático. Ele não exige fé cega, mas sim a fé raciocinada. Por exemplo:
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Ressurreição da Carne vs. Reencarnação: O Espiritismo não crê na ressurreição da carne (o corpo físico se levantando do túmulo), que é um dogma ilógico, mas sim na reencarnação do Espírito em novo corpo, que é uma lei de progresso e justiça.
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Pena Eterna vs. Lei de Causa e Efeito: O Espiritismo não aceita a ideia de uma punição eterna por erros cometidos numa breve existência. Isso é contrário à bondade de Deus. Defende a Lei de Causa e Efeito e a Misericórdia Divina, que sempre dão novas chances (reencarnação) para o arrependimento e a reparação.
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A Subordinação: Para o Espiritismo, a parte dogmática é a menos importante, sendo aquela que mais causou divisão e intolerância entre os homens. A Doutrina foca no que une: a moral.
V. A Parte Moral
Esta é a essência do Evangelho e a parte mais importante na visão de Kardec. Compreende todas as máximas que tratam da conduta humana, do dever, da virtude, da caridade, da humildade, do perdão, do amor ao próximo e a Deus. É o código de ética universal.
A Visão Espírita:
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A Imutabilidade: A moral evangélica é imutável, eterna e universal. Ela é válida para todos os tempos, todos os lugares e todos os mundos habitados. Não depende de rituais, dogmas ou crenças específicas para ser aplicada.
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O Caminho da Perfeição: Jesus resumiu toda a Sua moral em duas máximas: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.” A Doutrina Espírita ensina que a aplicação desta moral é a única condição para a felicidade futura e a única maneira de acelerar o progresso espiritual.
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A Caridade como Chave: Kardec, no capítulo 15, resume a moral evangélica na máxima “Fora da Caridade não há salvação”.
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Caridade: Segundo o Espírito de Verdade, “Caridade é benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
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A Caridade é a expressão mais pura do Amor e o alicerce sobre o qual se constrói toda a moral espírita. Sem a caridade, todos os outros atos e rituais são vazios.
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A Reforma Íntima: A Doutrina Espírita não se preocupa apenas com a crença, mas com a ação. A parte moral do Evangelho é o programa de trabalho do Espírito. Estudar o ESE é refletir diariamente sobre como transformar os vícios (orgulho e egoísmo) em virtudes (humildade e caridade).
Conclusão: A Unidade Pela Moral
A genialidade de Allan Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo reside em sua capacidade de destilar a mensagem pura de Jesus. Ao dividir o conteúdo evangélico nas cinco partes, ele mostra que:
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Os Atos e Os Milagres serviram para atestar a autoridade de Jesus (o quem e o como).
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As Predições servem para confirmar o plano divino e a continuidade da revelação (o quando e o porquê).
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A Parte Dogmática é relativa, sujeita à interpretação humana e à evolução da razão (o que foi mal interpretado).
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A Parte Moral é a única absoluta, eterna e universal (o que deve ser feito).
O Espiritismo, através do ESE, convida o cristão e o buscador da verdade a focar no essencial: o código moral de Jesus. Não importa a denominação religiosa, se se crê na Trindade ou na reencarnação, a prática do Amor e da Caridade é o único passaporte para a felicidade.
O Evangelho Segundo o Espiritismo é, portanto, o convite à reforma íntima, à substituição do egoísmo (raiz de todos os males) pelo Amor Fraterno (fonte de toda a felicidade). Ele desmistifica o Evangelho, tornando-o um livro eminentemente prático, que nos orienta a construir o Reino de Deus — o reino do bem, da paz e da justiça — primeiramente dentro de nós, para depois o estendermos ao mundo.

