A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec, apresenta uma visão radicalmente diferente do “Diabo” em comparação com o conceito tradicionalmente difundido por algumas religiões. Para o Espiritismo, não existe um ser individualizado e eterno, com poder para rivalizar com Deus, conhecido como Diabo, Satanás ou Lúcifer.
Em vez disso, o que se entende por “Diabo” na Doutrina Espírita é a personificação alegórica do mal e o conjunto de todos os Espíritos imperfeitos, que ainda se encontram nos primeiros degraus da escala evolutiva e que, por sua própria imperfeição, praticam o mal.
O Diabo na Doutrina Espírita: Explicação Detalhada
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Não é um ser criado para o mal: Deus, sendo soberanamente bom e justo, não criaria seres para serem eternamente infelizes ou para praticarem o mal. Todos os Espíritos são criados simples e ignorantes, com potencial para evoluir em direção à perfeição. O mal é, portanto, uma decorrência da imperfeição e da ignorância dos Espíritos, e não uma criação divina.
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Alegoria do mal: A figura do Diabo, com chifres e cauda, é uma representação simbólica das paixões inferiores, do egoísmo, do orgulho e de todas as imperfeições que ainda predominam nos Espíritos menos evoluídos. É a soma das tendências negativas que residem em cada um de nós e que se manifestam na Terra através da ação dos Espíritos imperfeitos.
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Espíritos imperfeitos: São os Espíritos que ainda não desenvolveram plenamente suas faculdades morais e intelectuais. Eles se encontram na Terceira Ordem da Escala Espírita (conforme O Livro dos Espíritos), caracterizando-se pela predominância da matéria sobre o Espírito, a propensão para o mal, a ignorância, o orgulho, o egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes.
- Não são essencialmente maus: É importante frisar que nem todos os Espíritos imperfeitos são essencialmente maus. Muitos deles possuem mais leviandade, irreflexão e malícia do que verdadeira maldade. Eles não fazem o bem, mas também não fazem o mal por prazer, exceto os da classe dos Espíritos impuros.
- Progressão gradual: Esses Espíritos estão em um processo de aprendizado e depuração. Através de sucessivas encarnações e experiências, eles vão superando suas imperfeições, desenvolvendo o bem e progredindo na escala espírita. O sofrimento que experimentam é um meio de purificação e de aprendizado.
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Influência dos Espíritos imperfeitos: Os Espíritos imperfeitos podem influenciar os seres humanos, sugerindo pensamentos e inspirando ações. No entanto, o livre-arbítrio do indivíduo é soberano. A pessoa tem sempre a escolha de ceder ou resistir a essas influências. As preces, a prática do bem e a elevação do pensamento são formas de atrair a influência dos bons Espíritos e afastar os imperfeitos.
Trechos de Livros Espíritas sobre o Assunto:
As principais obras que abordam o tema são O Livro dos Espíritos e O Céu e o Inferno, de Allan Kardec.
De O Livro dos Espíritos:
Na Segunda Parte, Capítulo I, “Dos Espíritos”, Seção VIII – “Anjos e Demônios”:
- Questão 131: “Há demônios, no sentido que se dá a esta palavra?”
- Resposta: “Se houvesse demônios, seriam obra de Deus. Mas, porventura, Deus seria justo e bom se houvera criado seres destinados eternamente ao mal e a permanecerem eternamente desgraçados?1 Se há demônios, são os Espíritos imperfeitos que, por seus vícios e paixões, praticam o mal; porém, não são criaturas destinadas ao mal eternamente.”
Este trecho é crucial para entender a desmistificação do conceito de Diabo. Kardec questiona a bondade e a justiça divina caso um ser de maldade absoluta e eterna fosse uma criação de Deus. A resposta deixa claro que os “demônios” são, na verdade, Espíritos em estágios iniciais de evolução, que praticam o mal por sua própria imperfeição.
Ainda em O Livro dos Espíritos, ao descrever a Escala Espírita, na Terceira Ordem – Espíritos Imperfeitos, a questão 101 descreve as características gerais desses Espíritos:
- Questão 101: “Características gerais. – Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas2 as paixões que lhes são consequentes.3 Têm a intuição de Deus, mas não O compreendem. Nem todos são essencialmente maus. Em alguns há mais leviandade, irreflexão e malícia do que verdadeira maldade. Uns não fazem o bem nem o mal; mas, pelo simples fato de não fazerem o bem, já denotam a sua inferioridade.”4
- Continua a questão 101: “Sofrem, pois, verdadeiramente, pelos males de que padeceram em vida e pelos que ocasionaram aos outros. E, como sofrem por longo tempo, julgam que sofrerão para sempre. Deus, para puni-los, quer que assim julguem. Podem ser divididos em cinco classes principais.”5
Essas classes, detalhadas nas questões seguintes (102 a 106), incluem os Espíritos impuros, levianos, pseudo-sábios, neutros e batedores. A descrição dos Espíritos impuros (Questão 102) é a que mais se aproxima da ideia popular de “demônios”, descrevendo-os como inclinados ao mal, que dão conselhos pérfidos, sopram a discórdia e se mascaram para enganar, fazendo o mal por prazer e por ódio ao bem.
De O Céu e o Inferno:
No capítulo “Os Demônios”, Kardec aprofunda a explicação sobre a origem do conceito de demônios e Lúcifer, mostrando que são frutos de interpretações errôneas e mitológicas. Ele reafirma que a ideia de um ser todo-poderoso do mal é incompatível com a onipotência e a bondade divinas.
Kardec explica que o termo “diabo” (do grego diabolos) e “Satanás” (do hebraico satã) significam “adversário”, e que, em muitas passagens bíblicas, o termo se refere a opositores, não necessariamente a uma entidade maligna.
Em resumo, a Doutrina Espírita apresenta o “Diabo” não como um ser externo e onipresente que tenta a humanidade, mas como a representação do mal que ainda reside nos Espíritos em estágio inferior de evolução, incluindo a própria humanidade. O combate ao “Diabo” é, portanto, uma luta interna de cada indivíduo contra suas próprias imperfeições e as influências dos Espíritos ainda apegados ao mal, num processo contínuo de aprimoramento moral.